A Maria espreitava as andorinhas na elaborada construção do ninho no mesmo lugar de anos anteriores, debaixo do beiral na casa com varanda de madeira pintada de vermelho... Percebeu, depois, que os ovos pequeninos chocavam.
Um dia, sem mais nem menos, apareceram na borda do ninho umas cabecitas peladas, meias tontas, nuns gritos fininhos e aflitivos, de desesperada fome. Aguardavam os pais que se revezavam numa azáfama organizada transportando a comida no bico, com uma perícia impossível.
Maria espiava-os,, cada dia, horas e horas, sentada na penumbra, curiosa de ver o momento do pimeiro voo. Tardavam. Os pais, a certa altura, enfastiaram-se daquela preguiça dos filhos, sempre aos gritos de fome aloucada, escondendo-se, escandalosamente, no fundo do ninho, quando percebiam que os pais queriam empurrá-los para fora, para aquele vazio desconhecido.
O António cuidava dos pombos-correio, conversava com eles, admirava-os e passava tempos infindos à sua volta.
Maria esperava o primeiro voo dos passaritos... os pais enredavam-se num rodopio de exibições, em frente ao ninho, empoleiravam-se à beirinha e empurravam os filhotes para o céu. Andaram naqueles incentivos exemplificativos dias e dias...
Maria e António iam até ao correio enviar cartas aos amigos ( escreviam-se e enviam-se cartas naquela época!) pela sombra das casas, na modorra da tarde quente, que corriam dias de Verão e sentia-se o calor de estio. Percorriam, às vezes, o mercado, pela manhã, e deslizavam os olhos entre a variedade colorida dos frutos ( que ainda não estavam formatados, nomalizados e cheiravam mesmo a frutos...) e os legumes. O entardecer trazia uma ligeira brisa refrescante e, à noitinha, ouviam , nitidamente, os sons nocturnos no silêncio acalorado. Uma madrugada, do pátio, assistiram, incrédulos e emocionados, ao primeiro passo do Homem na Lua, numa televisão dentro de uma saleta com a porta aberta.
Uma manhã, Maria sentiu raiva: os pássaros novos, num equilíbrio espantoso, desafiavam as alturas, giravam no ar, em frente à varanda de madeira pintada de vermelho, subiam numa vertigem de ar, desapareciam por cima dos telhados, apareciam de novo, entravam e saíam do ninho, com facilidade impressionante. Marotos! Durante a manhãzinha... tinham voado durante a manhãzinha... - só podia ser! que ainda na tarde-noite anterior, os pais viam-se e desejavam para eles se empoleirarem na borda do ninho... Marotos! Então, sorriu: os pais voltejavam em voos largos como se vigiassem as diabruras dos filhos, agora perigosa e atrevidamente, a exibirem os seus dotes ...
A meio do Verão, Maria e António, despediram-se.
Pensavam não voltar a encontrar-se nunca mais... e foi o que aconteceu!
Apenas houve um dia, noutra cidade, numa rua: cada um seguia no passeio, em sentidos opostos, com o seu grupo de amigos, quando se viram. Afastaram-se dos amigos. Ele ria. Os seus olhos escuros brilhavam no rosto moreno-centeio e ela deu uma corridinha com as mãos abertas para acolher as dele, sorridente. Ninguém percebeu bem o que se passou: nos olhos de ambos reflectiam-se mensagens de pombos-correio e, das mãos, esvoaçavam andorinhas invisíveis num rasto de poesia mágica.
( Memórias despertadas pelas fotos das aves publicadas no blogue AVOZDAROMÃZEIRA)
Wednesday, June 27, 2007
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4 comments:
Maravilhoso é o teu conto. Então e para o Conto Livre, não há nada? Pensa nisso!
Um abraço
E das andorinhas houve música e encontros, desenhos de voos nos olhos e mãos. E o brilho moreno-centeio!
Aquele final é bonito: leva mais histórias para contar
Nota: elas, as cinco andorinhas, já voam, mas ainda dormem no ninho, o que também é "poesia mágica". Vamos ver no próximo ano!
Abraços
Maravilhoso conto que me recordou Notre Damme des Hirondelles da Yourcenar! As andorinhas em traços de poesia...
Beijos
Lindo!
Muito lindo isso, Renda!
Quanta habilidade com as palavras...
Obrigado pela visita minha amiga...
Estava com saudades.
Um beijo.
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