Sunday, October 01, 2006

Carta a uma filha


Segue o comboio o seu caminho contigo lá dentro. Deixaste os vestígios do costume no quarto. Uma camisola despreocupada sobre a cama, uns papéis na escrivaninha, um saco da Natura no chão e uma série de recomendações para eu ser feliz.
Falo contigo todos os dias , escrevo-te mails ( és tu que me espicaças para aprender estas novidades todas desde há anos , caso contrário estava info-analfabeta; devo-te também esta evolução e não só as das ideias, entre mil e uma outras evoluções) em que me exercitei quando passaste um ano em Manchester ( até me inaugurei a fazer compras via net por essa altura), agora já falo contigo no messenger , uma coisa toda modernaça, tiro fotos na máquina digital que me ofereceram num Natal e ensinas-me a observar pormenores , mando-te mensagens no telemóvel, um instrumento que uso quase só para comunicar contigo ( também falo com a tua madrinha que está aficar um "pro" nisto da internet), de resto nem me faz falta nenhuma para mais nada, o que faz muita confusão ao mundo quase inteiro e divirto-me na net a (re)aprender as capitais dos países da Europa e por aí fora, entre muitas outras pesquisas.
Falo contigo todos os dias. Ao ouvirmos as nossas vozes, sentimos a pulsação dos nossos estados de espírito.
Falo contigo todos os dias.
Quando nos encontramos , é sempre uma festa. Por causa das asas que ganhaste e eu te ajudei a criar, encontramo-nos menos, quer dizer, fazemos menos festas, mas sempre muito intensas e alegres. Quando regressas ao teu sítio, ficam por aqui umas penas soltas e um nó no meu coração, tal e qual como quando começaste a ir para a escola a pé. É uma coisa a que nenhuma mãe se consegue habituar: a deixar ir um(a) filho(a) sozinho a pé para a Escola sem um nó no coração, quando ainda não sabe que o trajecto para a Escola é a aventura mais pequena. ( Quando saíste com as tuas amigas de carro pela primeira vez , foi muito pior, pensei que morria!) . Mas tenho-me aguentado de pé. Sempre.
Falo contigo todos os dias. Não posso é aconchegar-te a roupa à noite antes do beijo, nem pôr-te na mesa o almoço para não te preocupares com nada. Só posso recomendar-te que te alimentes e que durmas bem para aguentares tanto trabalho. As asas que ganhaste não te permitiriam tantas mordomias. Sabe-te bem ter o teu canto.
Falo contigo todos os dias. Às vezes, precisas de me recomendar calma , que tu tens tudo controlado à tua maneira. E eu sempre a querer poupar-te angústias e cansaços e tirar-te as pedras do caminho. Tu achas que as pedras têm que ser retiradas, rodeadas, transpostas por ti, que eu não me devo preocupar tanto. Sei tudo isso, concordo com isso, mas, se eu as pudesse carregar por ti, para mim era mais fácil. Tens as tuas asas e o teu caminho e tens que as usar e treinar para funcionarem cada vez melhor, eu sei, e acertares mais depressa no caminho.
Falo contigo todos os dias e nem é preciso de falar muito.
Deixaste os vestígios da tua passagem no quarto. Uma camisola despreocupada sobre a cama, uns papéis na escrivaninha, um saco da Natura no chão e uma série de recomendações para eu ser feliz.
Quando chegares ao teu sítio, voltamos a falar.

2 comments:

vareira said...

Desculpa sentir-me um pouco ou mesmo muito irmã dessa tua filha...Também me tens ensinado a voar!

LUA DE LOBOS said...

como Mãe coruja galinha e sei lá que mais, senti as tuas palavras como se cada uma delas fosse minha e uma lágrima teimosa saltou que nem uma pulga desgarrada, também tenho uma filha longe e uma neta que só vi duas vezes mas que falo com elas todos os dias... a vida calhou assim... só preciso que eles estajam felizes... só.
Parabéns porque escreves muito bem e tocou-me profundamente, vou ler o resto do teu blog daqui a bocado quando estiver despachada de emails :)

agora queria pedir um favor... se passas pelo meu blog porque tem um apelo muito urgente e eu sei que as gajas são bem mais sensíveis a apelos destes que os gajos :)
xi
maria de são pedro