Friday, October 27, 2006

Escrever...

Caía a chuva bem caiidinha sem cessar, através da carapaça do nevoeiro e descia a temperatura.
A propósito do post “Os nossos livros”, a meio da manhã, no início da semana, ouvi umas palavras especialmente generosas. Até corei.

Pelo dia fora, pus-me a pensar onde é que esta mania de escrevinhar por tudo e por nada terá começado. E lá tive que voltar a S. Martinho do Porto. Não sei como isto acontece, mas parece que todas as nossas vidas tiveram aí, junto à baía, início, o que não é verdade. A minha vida tinha começado quase meia dúzia de anos antes. Como já disse algures , uma pessoa muito importante nasceu por essa terra, mas eu já era à data uma menina crescidinha com duas tranças ou rabo de cavalo e entrei, depois, para a Escola. E foi nessa Escola que esta aventura da escrita, normalmente para mim própria, deu os primeiros traços. Umas letras muito bonitas bem desenhadas num caderninho aprumado de duas linhas. Letras minúsculas, maiúsculas, cheias de rabiosques e barriguinhas. Do caderninho de duas linhas juntinhas, o caderno de linhas normais para a caligrafia e as letras surgiam todas repimpadas de tamanho pequeno, tamanho grande, tamanho muito grande. Estou a lembrar-me de língua de fora a aperfeiçoar os desenhos do alfabeto completo. Não como agora, em que as crianças passam horas a escrever sempre a mesma letra até enjoarem, depois de terem andado no infantário anos a exercitar a mão para a escrita com uma série de técnicas surrealistas. As crianças destes tempos não são menos inteligentes, eu acho que os adultos é que complicam as coisas . Então estávamos nós a escrever as letras e as frases e os textos em belas letras de tamanhos vários. Tudo com uma naturalidade que hoje me espanta. A única preocupação que me afligia era a tinta, que não calculasse bem a tinta a ficar no aparo saído do tinteiro branquinho encafuado no respectivo buraco da carteira. Aí , o caldo ficava todo entornado. Quer dizer, caía um borrão na página, entre as linhas, sobre as letras, uma desgraça. Ficava maculada aquela perfeição de escrita e era uma tragédia, porque tinha que se escrever tudo outra vez, depois de tanto esforço, e a professora não era para graças, podia rapar da “ menina dos cinco olhos” e então ainda tinha menos graça. Essa tragédia acontecia quando menos seria de desejar. Os aparos eram muito enervantes nesses e noutros casos, como por exemplo, quando arrastavam com eles um pêlo qualquer ou arranhavam o papel. Voltei a entrar em pânico de novo mais tarde , quando tinha que passar o desenho geométrico a tinta da china com aquele bendito tira-linhas. Não tenho ouvido falar desse trauma , o que significa que esse tormento já terminou.
Passaram-se muitos anos até que alguém desse pela minha escrita. Até aí, tudo normal. Eu também preferia viver no anonimato. Já era suficiente exposição andar de lado para lado, de terra em terra e de Escola em Escola. Por isso , acho que a minha “carreira” na escrita ficava-se mais por casa. A letra era muito bonita. ( Tinha que ser . Um dia, o meu pai apanhou-me a ensaiar um “a” minúsculo com um traço a meio, em vez de me contentar com o “a” normalzinho, escorreito e com um espacinho em branco dentro dos seus limites e foi o bom e o bonito. Ficaram-se por aí as minhas invenções de um alfabeto com arabescos.) A minha irmã, que escreve muito melhor que eu, achava bonito o que eu escrevia. E a minha prima também. Então, durante o tempo que a minha Mãe nos obrigava a permanecer no quarto a estudar (?), eu punha-me a escrever. Escrevia sobre tudo o que me lembrava. Escrevia até à minha irmã e à minha prima cartas de namorados que elas não tinham, para elas se gabarem às colegas daqueles amores soberbos que nunca existem. Essa correspondência depois terminava de forma trágica, porque tinha que acabar, que nós fartávamo-nos do romance epistolar. E, como esses amores especiais e espectaculares não podiam acabar simplesmente acabando, a ruptura tinha que se dever a alguma força exterior, contundente, fatal e sem remissão (precisamente por ainda não termos vivido nenhum desses amores, pensávamos neles com uma aura de amores para sempre, poéticos e doces) e elas ensaiavam durante uns três dias um ar melancólico e pesaroso, que depois esqueciam, porque os amores como os desgostos passam em vertigem, nos alvores dos treze anos. Enfim , escrevia. Quando não escrevia, lia. Lia muito, lia tudo. Antes de ser obrigatório ler as obras integrais, devorava Eça de Queirós, Júlio Dinis, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo branco, entre outros. Acho que dei volta aos livros da Biblioteca da “meu” Liceu ( o defunto e enterrado Rainha Santa Isabel, ali à rua do Heroísmo, na cidade do Porto , inaugurado por essas alturas, deixando nós de frequentar as aulas no palacete do princípio da rua) e da Biblioteca Municipal, junto ao Jardim de S. Lázaro. Portanto, tempo para estudar não me sobrava muito. E lia ( metia os livros debaixo de um monte de dicionários de Inglês ou Francês, posteriormente de Latim e Grego, para que, numa inopinada entrada da minha mãe para verificar se eu estudava, aquilo estar tudo controlado – hoje conto isso à minha Mãe e ela não acredita numa palavra) e escrevia. No quarto ou quinto ano ( antigo, antiquíssimo) , a minha Professora de Português, chamada Berta, leu na aula uma das minhas redacções, escrita num teste. Aquilo foi emocionante. A voz da Professora arranhada de lágrimas ( será que já usei esta imagem alguma vez?) leu o texto até ao fim, um texto cheio de viagens e de saudades e separações e tudo ficou quieto e silencioso a imaginar aquelas fantásticas vidas. Tudo inventado. Mas assim, lido daquele modo com voz verdadeira até parecia um grande romance. Acho que, se fosse hoje, ainda me mandavam para alguma psicóloga, achando que eu passava uma vida estranha e dolorosa, quando, afinal, a mocinha apenas tinha uma imaginação exacerbada, fabricada ao som da leitura dos romances de outras épocas. Tive outra Professora de Português que seria a minha Professora de Latim a quem chamávamos a “Formosíssima Maria” , não por ela ser formosa, mas porque – está bem de ver – tinha uma paixão obsessiva pelo episódio de “Os Lusíadas” que lhe deu o nome. Mas essa não se deixava levar pela emoção tão facilmente. Foi também a única vez naqueles anos todos que tive honras de divulgação desse género de um texto meu. Desatei , no entanto, a escrever pequenos contos. Nuns caderninhos todos maneirinhos. Ou em folhas soltas de argolas que juntava com um laçarote e oferecia. A todos, em especial aos meus amigos “do comboio”, que partilhavam aquelas viagens diárias entre Espinho/Valadares/Devesas –Porto(Campanhã), viagens cheias de aventuras, pelo menos, nas nossas cabeças. E, em particular , oferecia os contos a duas irmãs de Espinho, a Nany e a Camy, a primeira morena , cheia de sardas, a outra, de pele branquinha, branquinha, loira, muito loira. Elas liam aqueles eventuais contos e davam-nos ao avô a ler. O avô delas, que nunca cheguei a conhecer, era o meu fã número um e quase único. A vida separou-nos com mais uma volta. E as minhas aventuras pela escrita ficaram reduzidíssimas a um ou outro poema num jornalinho ou revista e a uns textos de trazer por casa.
Uma tarde de Verão, na piscina de Espinho, sem mais nem menos , quem é que encontro? A Nany. Continuava morena, com sardas, alegre e extrovertida. Conversámos, como se o tempo e a distância nunca nos tivessem separado. A certa altura , com um brilho jovem e cúmplice nos olhos, confidenciou-me que ainda guardavam os meus contos, que os liam , de vez em quando, e que continuavam a achá-
- los muito bonitos.

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