Saturday, June 04, 2016

O gato



O gato escapava-se, enredava-se, numa ascensão por lugares desconhecidos,
Caminhava junto às paredes, esticava-se e, entre danças e malabarismos,
Subia ao telhado pintado de musgo, procurava o triângulo de sol quentinho
E amodorrava ao calor das manhãs.
Sob o peso do tempo e das intempéries, o telhado enfim ruiu,
O gato anda agora atordoado pelas ruas e tornou-se vadio.
Vagueia sem rumo sem aprumo, desgostoso e macambúzio
Numa procura insana.
Nas noites de nevoeiro, cruza-se com os fantasmas dos antigos amantes:
Aconchegados um ao outro, segredam intimidades não ditas antes,
Escondem-se nos portais das casas  e trocam carícias extravagantes
A coberto da escuridão.
Outras noites, encolhe-se à passagem titubeante de bêbados inveterados
A cantarem canções patéticas e a desafinarem poemas inventados.
Pela manhã, as pombas fogem dele, em voos desenfreados
De asas espavoridas.
O gato segue indiferente, olhos no chão, com saudades do sol
E do telhado que ruiu.

in
Jardim de Palavras, 2ª Antologia Poética, Orquídea Edições