Thursday, March 29, 2012

Tantas casas depois

a casa
a vida o amor
os sonhos
a simplicidade
apostaste a tua vida naquela casa
as desilusões
os pesadelos
os vizinhos
a vida de aldeia
as festas
os casamentos os baptizados
funerais nascimentos
no quintal houve a certa altura
a mó antiga
de um moinho ainda mais antigo
a servir de mesa
noutro ano nasceram os amores-perfeitos
mais perfeitos que jamais viras
nunca mais nasceram outros iguais
naquela casa entrou a certa altura
a tua filha, a tua força,
a luz da tua vida, a bússola no teu caminho
quando viste que não ia ser a casa para sempre
agarraste no que te sobrava de ilusão
e foste embora sozinha.


a casa dos teus Pais
era a casa dos Verões dos garotos
sabe sempre bem
porque os teus Pais estão ainda ali


a casa
a essa casa chegaste com uma trouxa feita de nada
a casa tinha uma varanda para o campo
e largas janelas altas na cozinha
gostavas daquela largueza
plantaste umas flores junto à janela
e acreditavas.
a casa não tinha culpa
chegaste sem nada
apenas tu
cada lanço de escadas era uma vitória
foram dias de espera
de desespero de mudanças
de inquietações de sobressaltos
de lágrimas e risos confusos
os Invernos foram frios e tristes
encontramos pessoas que nos entorpecem o caminho
o nosso purgatório
tempos de desesperança
de lágrimas de hipocrisias
criaste uma carapaça
tiveste insónias
foram tempos maus
e ainda muito piores
houve tempos de sorrisos
remendaste o coração
e aprendeste tudo de novo.



foram tantas as casas
as vidas
agora deixa estar essas paredes
esses móveis essas louças
não apagues essas memórias
são as memórias que construíste
nesses armários de vinte anos
onde guardas pratos desirmanados
os tachos de ferro fundido
talheres quanto bastem
nos móveis cada peça que guardas
tem uma história marcada
a porta do armário
da cozinha não fecha,
fica encostada
abre devagarinho
como se andasse um fantasma perdulário
por aí sozinho
não há fantasmas antigos
os fantasmas de agora
brincalhões, amigos
guardam-te a casa, esperam-te à entrada
quando sais uma temporada
mais prolongada
deixa ficar a lareira acesa
no Natal, nas noites frias
aconchega-te no teu canto do sofá
partilha a alegria
dessa vida que escolheste
sorve cada segundo
a um canto da estante
vive um despertador
entre as fotos nas molduras
e uns jarrões transparentes
as sardinheiras todos os dias
floridas evocam-te sorrisos
um cabaz de flores silvestres
debaixo da mesa do telefone
os galos cantam
a qualquer hora
ao longe
e ao longe tocam os sinos
as horas certas
deixa entrar o sol
enquanto despertas
segue os rituais
na rua lá em baixo
os inquietos pardais
procuram migalhas
na varanda desabrochou uma flor.
Esta é A casa.

Thursday, March 22, 2012

Ainda outra casa

a casa do andar de cima
numa travessa quase sem saída
tinha um sótão
e um quintal com um tanque
a tua Mãe gastou-se naquele tanque
também tinha um galinheiro ao fundo
havia sempre um quintal e um galinheiro
nas casas onde viveste
o quintal dava para um caminho estreito
era aí que havia as nespereiras
de um lado e outro
o caminho ia ter à rua dos combatentes
por ele ias ver a saída do futebol
e os jogadores da académica
o zé carvalho foi depois campeão
dos 400 m barreiras
morava lá perto
muitas vezes
estava à janela
o teu pai partiu
voltou
as paredes velhas
choraram a ausência
o chão encerado
a arca de folha ao cimo das escadas
o terramoto, uma vez houve um terramoto.



Monday, March 19, 2012

Mais uma casa

a casa um andar
no primeiro andar
hoje chamar-se-ia T3
tinha um quintal
um quintal que também era um jardim
e havia galinhas num galinheiro ao canto
para lá do quintal-jardim
era um descampado
o Salvador saltava os muros
e vinha conversar connosco
a tua irmã mais nova foi para a escola
pela primeira vez
esqueceu-se do porta-lápis
ainda a tua Mãe não chegara a casa
já ela estava lá à porta
à espera
a casa era nas Devesas
perto da estação do caminho de ferro
andámos de comboio todos os dias
para o liceu
era o rainha agora já não existe
o comboio atravessava a ponte devagarinho
fizeste muitos amigos no comboio
um dia o nome da tua irmã desapareceu
da pauta do exame
como tinhas anunciado
zangada
ficaste apavorada
pela premonição
nunca mais quiseste fazer isso
era muita responsabilidade
quem sabe hoje serias a maya
ficaste muito assustada
com medo dos pensamentos
na casa do lado morava a norinha
era diminutivo de Leonor
a tua prima também morava naquela casa
no andar do outro lado morava a D. Luísa
e no andar de cima já nem me lembro,
mas era aí que íamos (raramente)
ver televisão
(não havia televisões em todas as casas)
foi aí que Portugal ganhou à Coreia 5-3
e que a Madalena Iglésias foi à eurovisão,
aqueles anos passaram depressa
na ilusão de que aquela casa
seria casa para sempre, não foi.



Wednesday, March 14, 2012

Outras casas

a casa detrás dos montes

fria e vazia
do pão escuro e ázimo
sem luz nem calor
a casa que ficou para trás

a casa do largo
junto ao fontenário
cheia de janelas e sol
as portas vermelhas
(hoje pintadas de verde)
de vizinhos e lareira acesa
de neves, de gelos,
de escola e companheiros
de Verões, cereais, laranjas
e cantigas feitas de tabuadas
a casa do nascimento
da segunda e última irmã
a cruzinha, o Douro

a casa dos avós
de férias abençoadas e longas
quentes de milho cortado
de milho nas eiras
de uvas maduras

a casa longe
na fronteira
no fim do mundo
lá onde não há mais caminhos
só becos sem saída
de voltar atrás
de sombras húmidas

a casa grande
ao cimo das escadas
a porta vermelha
o quintal o jardinzinho
a tua irmã rachou a cabeça o queixo
a bola saltou para o telhado
a irmã do meio escondeu-se no armário do sótão
"saltou" um ano na escola
os pintos pavoneiam-se no galinheiro
com os patinhos amarelos
a imensidão o aconchego da lareira
as frieiras as mezinhas o pó de Maio
o susto o médico o remédio o alívio
a espreguiçadeira o armário antigo dos pratos
o frio, os nevões autênticos, a lenha a crepitar
o jogo do ringue os joelhos esfolados
a fonte o jardim o terço rezado
no mês de Maio à tardinha
nos Carnavais andam à solta os Diabos
deixaste esta casa numa madrugada de Janeiro:
nevava, céus, como nevava!!!



Saturday, March 03, 2012

Casas

a casa
a casa onde nasceste
no meio de quintais
ao lado do poço
a casa de passagem
na rua da nesga do mar
a casa da tua infância
a infância foi ali
(depois perdeu-se
não sei em que momento do caminho
encruzilhada
viagem
portal
casa
janela
lágrima
riso)
diante da baía
a baía vive também nos livros
a baía do Verão
da praia das barracas coloridas
às riscas
dos banhos no mar
dos polvos arrancados às pedras
das corolas azuis sobre os muros
das ervilhas-de-cheiro
a casa do nascimento
da tua primeira irmã
a casa do Inverno
o mar a entrar corredor dentro
o pai a lançar-se às ondas de Fevereiro
os pass(e)antes a vê-lo a nadar
encolhidos de frio
a praia de todos
a praia só nossa
as pequenas fugas
os pequenos desgostos
as tranças
o livro minúsculo do José do Egipto
(existe até hoje milhões de anos passados)
a irmã em convalescença
o Catitinhas as barbas brancas
a criançada
sentada na areia
a ver os robertos
a estação a automotora
que te levou do paraíso...