Monday, February 22, 2010

Passados

o velho arrastou os pés

com uma mão no peito

através

do caminho estreito

afastando as silvas

tropeçando

nos arbustos invasores

até à casa dos bisavós,

a casa em ruínas

as paredes ainda de pé

abrigavam árvores novas,

o sobreiro antigo engrossou

a figueira velha medrou

a videira apoiada ao choupo

mirrou

de tristeza entre devoradores

trágicos dos miasmas

de antepassados fantasmas;



o velho encostou o corpo

à parede

estendeu as mãos, quis rodear

todas as vidas passadas,

o tempo escorreu-lhe

entre os braços,

as vidas passam

tão depressa,

ainda ontem saí desta casa

cheia de gente

à procura do mundo,

agora regressei

e já não encontrei

ninguém...



o telhado há muito caiu

ruiu

a chaminé, na pedra do lar

na cozinha de terra batida

nem as marcas das cinzas

vingaram...



o velho lançou um olhar

ao sobreiro que restou,

à figueira, ao choupo preso à videira,

retrocedeu mais encurvado

pelo caminho estreito

a mão no peito,

a reter as lágrimas na garganta,

o tempo corre danado

como torrente

indomável ...



a mão no peito

pelo caminho estreito

arrimado

às lembranças,

as lágrimas

presas na voz,

a mão no peito

pelo caminho estreito...

Sunday, February 21, 2010

Cartas de amor

acende a lareira
aquece-me o coração de chuva
o comboio partiu dentro do horário
não sei em que dia de tempestade
esqueci-me de virar a folha do calendário
perdi o relógio, a hora, a sanidade
fiquei a arder nesta fogueira
de chama e sombra escura...

escrevo sem paragem
o tempo voltou atrás sem pressa nem vagar
anda desorientado em cartas dispersas de amor
nem sei se fui eu que as escrevi
de tanto tempo fugido e esquecido
aquela mulher não era eu na voragem
da paixão e da ausência num patamar
de outras vidas sem flores e sem cor
nem eras tu devo ter sonhado ou descrevi
esse ser e não ser sem nenhum sentido
só para constar de um romance desvairado
que não pode ter existido.

essas folhas de papel quadriculado
não fui eu que as escrevi
a caligrafia não é minha
nem é minha a vida dessas cartas
são papéis de um armário desarrumado
que encontrei em tempos e onde vi
a confusão romântica de gratas
memórias que a distância vai
embelezando ou destruindo
até ao esquecimento.

a chuva, não te esqueças da chuva
e acende a lareira
nem te esqueças dos papéis
lá no fundo do armário
vira a folha do calendário
e acende a lareira
trago o coração de chuva
muito frio
acende a lareira
o comboio já partiu
ficámos os dois com as velhas cartas nas mãos
lê essas cartas não são tuas nem minhas
são um romance antigo dos nossos avós
não te prendas
podes ficar preso nas malhas das palavras
e, se não voltas, fico para sempre à tua espera
à espera que acendas
outra vez este fogo
em dia de chuva...

ouves a música?
é a chuva ou o teu coração?
o meu não é, há muito que não sei dele!

acende a lareira...

Thursday, February 18, 2010

Barcelona



esta manhã

não descemos o carrer de radas

para ir à Calábria tomar um cortado

e comer uma ensaimada

contigo.




não te acompanhámos

no metro da linha verde

até à esquina de frame 25,

nem voltámos

sobre os nossos passos

nem subimos a encosta do parque Güell

assoberbadas pelo trabalho fantasioso

do arquitecto Gaudí,

nem desconstruímos com Picasso

os retratos

e os quadros

as pombas e as flores

numa bebedeira de azul rosa e absinto,

nem sequer nos abrigámos da chuva

na pastelaria ao canto do palácio do rei,

nem passámos na boquería

onde se almoça a filosofar

entre cheiros e cores.


não esperámos por ti

para comer os pintxos

ou beber un cava rosado.


esta manhã foste sozinha no metro da linha verde...


nós abrimos a casa da misericórdia

de Margarit

página trinta e nove

e lemos el vendedor de rosas
solitario y furtivo , con su ramo,
va a locales ncturnos en busca de parejas.

guardámos na agenda os bilhetes de metro

e dos museus

metemos as fotos nos álbuns digitais

e voltámos à rotina da nossa (in)segurança.
não me esqueci outra vez da máquina fotográfica
para te deixar à entrada da porta
um beijo rápido e muitos risos.


esta manhã
não descemos a rua
para ir tomar um café
e beber um sumo de laranja
contigo...